1974–1988: A origem dos RPGs em 10 jogos

Felipe Pepe
13 min readMay 24, 2017

RPGs são um dos gêneros mais populares e amados no mundo dos games — entre Fallout, Mass Effect, The Witcher, Final Fantasy, Dragon Age e centenas de outros, todos tem um RPG favorito.

Mas o quanto você sabe sobre a origem dos RPGs?

Infelizmente no Brasil tivemos a Política Nacional de Informática, a infame “reserva de mercado” implementada pela ditadura em 1984, que proibia a importação de computadores. Assim, os brasileiros só podiam comprar computadores nacionais, que eram cópias piratas dos americanos e europeus, e não tinham acesso a software ou jogos.

Esta reserva de mercado acabou em Outubro de 1992, mas com a inflação a mais de 1.100% ao ano, computadores eram um luxo inacessível. Somente no final dos anos 90, com a explosão das Lan-House e barateamento dos computadores o Brasil realmente abraçou o mundo dos games no PC.

O triste legado é que os primeiros 20 anos dos jogos de computador — quase metade de sua história — são pouco conhecidos por aqui. Raramente se fala sobre Apple II, Amiga, ZX Spectrum ou mesmo sobre jogos de MS-DOS.

A curiosidade em explorar esse passado que não vivemos me levou a criar o CRPG Book Project, um livro gratuito e colaborativo que reconta a história dos RPGs de Computador (ou CRPG), cobrindo mais de 300 jogos.

O que segue é uma não-tão-breve retrospectiva da história dos RPGs nos anos 70 e 80. Centenas de jogos foram lançados nessa época, alguns extremamente interessantes, mas vou me limitar aos mais importantes, que revolucionaram os RPGs e ainda influenciam muitos desenvolvedores.

A era PLATO

Em 1974, Gary Gygax publicou Dungeons & Dragons — nasciam assim os RPGs. (Versão resumida, a história toda precisaria de um livro inteiro)

Na época não havia computadores pessoais, apenas mainframes enormes, reservados a empresas e faculdades. Mas nessas faculdades haviam estudantes que se apaixonaram por D&D. E muitos sabiam programar.

Já em 1975 começaram a aparecer adaptações de D&D para mainframes, principalmente para PLATO — um poderoso sistema educacional de faculdades americanas que só exibia a cor laranja, mas já possuía tela de toque, telas de alta resolução e até uma versão primitiva da internet !

Muitos destes jogos se perderam, pois os administradores do mainframe deletavam eles da rede. Os programadores começaram então a esconder os jogos usando nomes “neutros” como pedit5 ou m199h. Mesmo assim, poucos jogos de PLATO sobreviveram.

Todos seguiam a mesma fórmula básica — cria-se um personagem aleatoriamente, usando regras simplificadas de D&D, e você tem que chegar até o final de um labirinto cheio de monstros, coletando equipamento e subindo de nível. Se morrer, começa do zero com um personagem novo.

De certa forma, são “Rogue-likes” (mesmo vindo antes de Rogue), mas a grande diferença é que todos tinha labirintos fixos — apenas os monstros e tesouros eram aleatórios.

Haviam dois estilos principais — jogos com gráficos vistos de cima, como pedit 5 e dnd:

E aqueles em primeira pessoa, como Oubliette e Avatar (que eram bem mais complexos):

A rede PLATO era tão a frente de seu tempo que jogos como Avatar suportavam até mesmo multiplayer via internet. Sim, nos anos 70! Quem tiver interesse pode jogar vários destes jogos no site Cyber1.

Rogue (1980)

Além dos jogos de PLATO, muitos jogos foram criados em outros sistemas de computação, e o principal deles é o lendário Rogue.

Ele ainda era um RPG sobre criar um personagem aleatório e explorar um labirinto, mas tudo era muito mais complexo — o labirinto era gerado aleatoriamente toda vez, haviam armadilhas, poções e pergaminhos com efeitos mágicos, monstros com habilidades especiais (como drenar força ou destruir sua armadura) e ainda era preciso achar comida para sobreviver.

Criado em mainframes que não suportavam gráficos, Rogue usa os famosos “gráficos ASCII” — nada mais que as letras e símbolos no teclado — “@” é seu herói, “O” é um Orc, “#” é um corredor, e assim por diante.

Essa aparente desvantagem fez com que o jogo fosse facilmente adaptado para qualquer computador, e dezenas de versões e ports de Rogue foram criadas — que aos poucos foram se transformando em outros jogos, como Hack, NetHack e Moria, criando o subgênero “Rogue-like”.

Rogue e seus rivais na rede PLATO tinham um publico muito limitado, pois poucos tinham acesso a mainframes (menos ainda podiam usar esse tempo para ficar jogando). O jogos eram uma curiosidade, uma brincadeira de programadores… até que chegaram os computadores pessoais:

Liderados pelo Apple II em 1977, essa primeira geração de computadores pessoais (Commodore PET, Atari 800, TRS-80, etc) ainda era um produto de nicho — o Apple II vendeu só 40.000 unidades de 1977 até 1983 — , mas isso já era um público milhares de vezes maior que o dos mainframes.

E com um público assim, já valia a pena começar a vender jogos…

Wizardry I: Proving Grounds of the Mad Overlord (1981)

Andrew Greenberg e Robert Woodhead eram dois amigo que fizeram faculdade juntos. Lá eles jogaram diversos RPGs de PLATO, e ao se formarem resolveram criar seu próprio RPG, agora como um produto comercial para o Apple II.

Wizardry é basicamente isso — uma adaptação de jogos como Oubliette para computadores pessoais, mas extremamente bem-feita, com várias melhorias e um excelente design de mapa.

Sua missão é criar um grupo de seis heróis, entrar no labirinto debaixo da cidade e derrotar o mago Werdna (Andrew ao contrário). Várias classes, raças, magia e equipamentos estão a sua disposição, mas o labirinto é um desafio e tanto…

São dez andares como o acima e, lógico, não tem mapa. O jogo vinha com folhas de papel gráfico, para que os jogadores desenhassem seus próprios mapas — o que não era fácil dadas as inúmeras paredes falsas, armadilhas rotatórias, áreas escuras, quedas e teletransportes.

Um enorme sucesso, Wizardry se tornaria uma das maiores e mais populares séries de RPG dos anos 80. E faria ainda mais sucesso no Japão, onde foram lançados nada menos que QUARENTA jogos Wizardry — inclusive um MMORPG em 2013 — além de inúmeros “clones” como Etrian Odyssey.

Ultima I: The First Age of Darkness (1981)

Richard Garriott é com certeza o mais importante desenvolvedor de RPGs da história. Filho de astronautas, quando o Apple II foi lançado Garriott juntou programação com sua paixão por RPGs e criou Akalabeth: World of Doom (1980), um dos primeiros CRPGs comerciais.

O jogo era tosco — você entrava no labirinto, matava o monstro que o Rei pediu, subia de nível e saia pra matar outro. Garriott colocou o jogo a venda na loja de informática da sua cidade, ganhou uma grana e resolveu fazer o RPG definitivo: ULTIMA.

Garriot tinha 20 anos na época, mas revolucionou o mundo dos jogos. Ele pegou tudo que gostava — Star Wars, Star Trek, Senhor dos Anéis, D&D, etc — e fez um RPG enorme com múltiplas camadas — uma aventura de verdade!

Em Ultima, você podia conversar com NPCs, pegar uma quest com o Rei, sair do castelo, cavalgar até uma cidade, comprar um barco, navegar até outro continente, encontrar um labirinto, explorar ele em 1ª pessoa matando monstros, comprar uma nave espacial e batalhar Tie-Fighters no espaço, achar uma máquina do tempo e voltar ao passado!

Essa megalomania amadora resultou num jogo irregular, mas que mostrava o potencial que CRPGs tinham — dava pra fazer muito mais que só matar inimigos dentro de um labirinto. E tudo isso dentro de um disquete de 360KB, rodando num Apple II com 1MHz de processador e 4KB de RAM!

Nos anos seguintes, a maioria dos CRPGs seguiria uma dessas três vertentes:

Wizardry — Jogos focados em combate e exploração, com labirintos em primeira pessoa (Bard’s Tale, Might and Magic, Alternate Reality)

Ultima — Gráficos vistos de cima, enormes mundos a serem explorados e foco na sensação de aventura (Phantasie, Questron, Deathlord)

Rogue — Os famosos rogue-likes, com labirintos randômicos, permadeth e gráficos vistos de cima (Telengard, Sword of Fargoal, Nethack, Moria)

Ultima IV: Quest of the Avatar (1985)

Qual o RPG mais importante da história? Eu diria Ultima IV.

Até 1985, todos os RPGs eram toscos. A história (quando tinha!) sempre era “Mate o Vilão”, ou no máximo um “Recupere o Tesouro que o Vilão roubou”.

Depois de lançar Ultima III (que era sobre matar demônios), Richard Garriott começou a receber cartas de pais dizendo que seus jogos eram um lixo, que os filhos jogavam por horas e só matavam coisas. Pior ainda, os jogadores matavam até mesmo os pobres aldeões e vendedores para pegar mais dinheiro e equipamentos. Os fins justificavam o meio.

Garriott criou então o RPG mais subversivo já feito.

Você chega todo felizão no reino, pronto pra matar vilões, e o Rei te diz que na verdade está tudo em ordem — você já matou todos os vilões no Ultima I, II e III. O problema agora é que o povo não sabe viver nessa paz. São egoístas, acostumados apenas a sobreviver a qualquer custo.

Sua tarefa então é se tornar um herói de verdade — um exemplo para a população seguir.

Para isso, você deve descobrir o que faz uma pessoa ser boa — as oito Virtudes — e, mais importante, seguir elas! Não mate inocentes, não mate inimigos indefesos, não roube, seja generoso, seja justo, conte sempre a verdade, e assim em diante. Finalmente os CRPGs tem role-playing.

Depois de descobrir as oito Virtudes e se provar digno, você consegue se conectar espiritualmente ao “Tomo da Sabedoria Absoluta”, lê ele e se torna o Avatar — exemplo moral do mundo.

Sim, é um RPG sobre virar Jesus, e ao invés de ter uma luta final você lê um livro. Se isso já seria chocante e inovador hoje, imagina em 1985. Ou então, pense em como a grande maioria dos RPG hoje ainda são “Mate o Vilão”…

Dragon Quest (1986)

É impossível falar sobre RPGs nos anos 80 sem mencionar Dragon Quest.

CRPGs já existiam há anos no Japão (para quem tiver curiosidade, escrevi outro artigo sobre a origem deles lá). No entanto, eram ainda jogos simples, clones primitivos de Ultima, ou até mais próximos de Zelda que de um RPG.

Até que certo dia, um programador Japonês chamado Yuji Horii ganhou uma viagem para os Estados Unidos, onde visitou a MacWorld Expo e se apaixonou por Wizardry e Ultima.

Voltando ao Japão, começou a criar seu próprio RPG, juntando a exploração e diálogos de Ultima com o combate em turno & primeira pessoa de Wizardry. Nascia assim Dragon Quest.

Mais do que combinar os dois estilos, o que realmente torna Dragon Quest marcante é como Yuji Horii adaptou RPGs ao Nintendinho de forma simples e elegante. Enquanto RPGs de computador usavam dezenas de hotkeys e ainda pediam pra você escrever o nome das magias na hora de usá-las…

…Dragon Quest fazia tudo isso com os dois botões do NES.

Além de deixar RPGs mil vezes mais acessíveis, Dragon Quest vinha com a arte do Akira Toriyama, criador de Dragon Ball, dando aos personagens um design único e carismático.

O resto é história. Dragon Quest vendeu milhões, inspirou incontáveis sucessores (inclusive Final Fantasy) e definiu o que hoje chamamos de JRPG.

Pra quem souber Japonês, a Enix publicou em 1990 um mangá chamado
ドラゴンクエストへの道 (“O Caminho até Dragon Quest”), que conta toda a história do desenvolvimento do jogo:

Dungeon Master (1987)

No meio dos anos 80 a chegada de uma nova geração de computadores (Macintosh, Amiga, Atari ST, PC Jr.) popularizou dois avanços: O mouse e suporte a som MIDI / Stereo.

Dungeon Master explora ambas — o jogo é inteiramente controlado pelo mouse, e é possível saber onde seus inimigos estão pelo sistema de som 3D.

Aproveitando também a velocidade das novas máquinas (agora com até 8 Mhz e 256 kB de RAM!) Dungeon Master troca o combate por turno de Wizardry por tempo real, exibe uma visão em primeira pessoa texturizada com sprites enormes animados e ainda uma física realista — monstros ativam armadilhas, portas podem ser quebradas, flechas atravessam grades, etc.

E o mais importante — o jogo é excelente.

Muito acessível que jogos como Wizardry ou Ultima, Dungeon Master foi um sucesso que criou um subgênero a parte — os “blobbers” em tempo real — chamados assim pois o grupo de heróis se move como uma entidade única — um “blob” (ou massa amorfa).

O jogo envelheceu bem e é um ótimo ponto de entrada para RPGs mais antigos. Se gráficos forem muito importantes pra você, Legend of Grimrock 2 (2014) é uma excelente alternativa moderna.

Ultima V: Warriors of Destiny (1988)

No final de Ultima IV você se torna o Avatar e ensina as Virtudes ao mundo — tipo Jesus.

Em Ultima V você volta e vê que deu ruim...

Lorde Blackthorn achou as Virtudes tão legais que transformou elas em leis autoritárias. “Seja Generoso” agora é “Doê metade do que você ganha, ou não ganhará nada.” Seja Honesto” agora é “Conte apenas a verdade, ou perderá a língua”, e assim por diante.

O debate moral se torna interessante por que muita “gente de bem” aprova essa mudança, então você não pode simplesmente marchar até o castelo e matar Lorde Blackthorn. Além disso, você foi declarado um impostor, e agora é um criminoso procurado!

O final é decepcionante, mas mesmo quase 30 anos depois Ultima V continua um dos RPGs mais políticos já criados (o que é parte elogio a Ultima, parte crítica a todos os outros RPGs).

Além de expandir os horizontes morais dos jogos, Ultima V introduziu rotinas diárias aos NPCs — eles trabalham de dia, vão ao bar de tarde, dormem de noite, conspiram de madrugada, etc.

Curiosidade: O jogo foi recriado em Ultima V: Lazarus — mod para Dungeon Siege feito por Ian Frazier, Lead Designer de Mass Effect: Andromeda.

Wasteland (1988)

Conhecido como “o avô de Fallout”, Wasteland é um RPG mundo aberto, onde você é um Desert Ranger, patrulhando o mundo pós-apocaliptico tentando restabelcer a lei e a ordem. O que é difícil, pois o mundo está cheio de mutantes, bandidos, cultos e robôs assassinos.

Abandonando D&D, o jogo usa um sistema flexível baseado em skills ao invés de classes (tipo GURPS) — ou seja, você cria um “Russo especialista em AK-47 e Facas”, não um “Guerreiro”.

Mas Wasteland ganhou fama por ter conflitos morais. Em Ultima IV ser “bom” era seu objetivo, mas aqui as escolhas são livres, e você pode fazer o que quiser. Por exemplo:

“O cachorro daquele garoto está com raiva — ele é perigoso e pode morder. Mas é o único amigo do garoto. Você mata o cachorro ou deixa ele viver?”

É simples, mas não havia nada assim até então.

Extremamente competente, Wasteland marcou época com sua enorme liberdade, tanto de jogabilidade quanto moral.

Pool of Radiance (1988)

O primeiro jogo oficial de Dungeons & Dragons para PCs, Pool of Radiance é um milagre da tecnologia: os desenvolvedores socaram AD&D inteiro em três disquetões de 360 Kb.

Era tudo o que um nerd nos anos 80 queria — todas as raças, classes (e multi-classes!), armas, monstros, magias, regras… TUDO! Você começa o jogo criando um grupo de 6 heróis, e sai por aí, fazendo quests para guildas, visitando os arredores da cidade, pegando side-quests, conversando com NPCs, explorando labirintos e batalhando monstros icônicos num combate tático por turno.

E terminar o jogo não era o fim! Você podia exportar seu grupo para os próximos jogos da série — Curse of the Azure Bonds, Secret of the Silver Blades e Pools of Darkness — formando uma saga de 4 jogos e centenas de horas de aventura — começando no Lv 1 matando Kobolds e terminando no Lv 40 viajando através dos planos com o Elminster e desafiando deuses.

Épico é pouco.

Pool of Radiance fez tanto sucesso que de 1988 até 1992 foram feitos nada menos que TREZE RPGs similares usando a mesma engine (toma Assassin’s Creed) — conhecidos como“Gold Box” por terem uma embalagem dourada:

Além de longas sagas em diversos mundos — como Forgotten Realms, Dragonlance, Spellhammer e Buck Rogers XXVC — a série também lançou Forgotten Realms Unlimited Adventures, um poderoso editor que ainda hoje tem uma comunidade produzindo mods e aventuras.

Fizeram ainda Neverwinter Nights em 1991 (diferente do da BioWare, de 2002), o primeiro MMORPG gráfico da história, com servidores para 50 jogadores simultâneos na net discada!

Obviamente, mesmo os fãs mais devotos cansaram de tantos jogos “Gold Box”, e as vendas começaram a despencar…

O fim de uma era

CRPGs até então sempre foram em geral um gênero complexo e intimidante — gráficos antiquados, interface horrível, milhões de números e regras, um ritmo lento e aventuras que duram dezenas de horas.

O início dos 90 marcou uma revolução — máquinas mais poderosas, gráficos atraentes, interfaces melhores e novo estilos de jogos. Dune II cria o gênero RTS, muito mais rápido e acessível que os jogos de estratégia por turno dos anos 80. E Wolfenstein 3D e DOOM chegam com tudo, transformando computadores em “máquinas de jogar DOOM”.

O lançamento do Super Nintendo e do Mega Drive deixa video-games cada vez mais populares e acessíveis, acompanhados de um incrível acervo de JRPGs — Phantasie Star, Final Fantasy VI, Chrono Trigger, Earthbound, Super Mario RPG e outros clássicos.

Nesse cenário, CRPGs se tornaram fósseis, obtusos e arcaicos. Durante boa parte dos anos 90, foram um gênero maldito, marcado por fracassos…

Mas isso é um história para outro dia.

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Artigo originalmente publicado no GamesFoda em 3 de Junho de 2016.

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Felipe Pepe

Brazilian living in Japan, Marketing dude and Gaming History enthusiast. Creator of The CRPG Book: https://crpgbook.wordpress.com/