A Colonização da História dos Video Games
Não, você não foi uma criança estadunidense de classe média
Em agosto do ano passado, foi realizada em Taiwan uma exposição sobre a Era de Ouro dos RPGs, celebrando jogos de 1980 até 1999.
Lá estavam todos os clássicos que você espera encontrar — Wizardry, Ultima, Dragon Quest, Final Fantasy, Diablo, Fallout, Chrono Trigger, Baldur’s Gate, etc… Mas também outros que você provavelmente nunca ouviu falar, tais como Legend of the Sword and Fairy, Xuan-Yuan Sword, Heroes of Jin Yong e The Twin Heroes.
Estes últimos são clássicos taiwaneses. Durante o final dos anos 90 e início dos 2000, Taiwan foi uma potência no desenvolvimento de jogos, de certo modo atrás apenas dos Estados Unidos e Japão. Eles produziram centenas de jogos, jogados por milhões de chineses, chegando até a influenciar a literatura e séries de TV chinesas. Sucessos recentes como Naraka: Bladepoint são celebrados como continuações dessa linhagem.
Contudo, nós não sabemos nada sobre jogos taiwaneses. Por diversos motivos, das barreiras linguísticas até sinofobia nua e crua, eles não são parte do “cânon dos vídeo games”. Eles não importam, são apenas uma coisa pequena e local.
E não é apenas Taiwan.
Quais jogos importam e quais não
Em 2019, Mia Consalvo & Christophe A. Paul publicaram Real Games (lit. Jogos de Verdade). O livro analisa porque alguns jogos são considerados legítimos e dignos de discussão mas outros não — porque Counter-Strike, StarCraft e EverQuest são “jogos de verdade”, mas jogos como Kim Kardashian: Hollywood e caça-objetos como Mystery Case Files não.
O livro identifica três pontos que costumam ser discutidos ao se avaliar se um jogo é “de verdade” ou não — a pedigree do jogo (seus desenvolvedores), o conteúdo do jogo em si, e sua estrutura de pagamento.
Isso nos ajuda a entender como um jogo como Free Fire consegue ter 150 milhões de jogadores em um dia mas ter zero presença na mídia de games (aqui focado na mídia estadunidense) — é um jogo de celular battle royale gratuito criado no Vietnã.
Mas acho que faltou ao livro um quarto ponto, um que raramente se discute abertamente, mas é tão importante quanto: quem joga esses jogos.
No caso de Kim Kardashian: Hollywood e Mystery Case Files, a maior parte são mulheres. No Free Fire, a maioria são pessoas do sul global — América Latina, Sul & Sudeste Asiático, Africa, Oriente médio, etc. É nóis.
O próprio livro já abre uma brecha para isso:
“Os primeiros estudos acadêmicos nos mostraram, pelo exemplo e pela omissão, quais jogos eram dignos de estudo e quais não eram. […] É provável também que esses jogos fossem os mais abordados porque eram aqueles que nós mesmos estávamos interessados em jogar.”
Se vivemos numa hegemonia estadunidense, onde mídias, pesquisas e culturas pautadas pelos Estados Unidos dominam o discurso, então é lógico que exemplos e omissões vem em sua maioria de americanos escrevendo sobre seus interesses.
O apagamento das experiências regionais
A Índia tem mais de 4 vezes a população dos Estados Unidos. Eles também jogam e, lógico, têm enormes sucessos como Real Cricket 20, um jogo de celular com mais de 50 milhões de downloads.
Porém jogos populares na Índia jamais serão discutidos fora do seu país a não ser que sejam apresentados por uma mídia estadunidense como a IGN, porque quase nenhum não-indiano consome mídia de jogos indianos — mesmo estando em inglês.
A China é outro ótimo exemplo — Black Myth: Wukong não é o primeiro sucesso chinês na Steam, o seu impacto veio do fato de ser o primeiro a capturar a atenção da mídia e dos gamers ocidentais.
Diferentes nacionalidades têm suas próprias histórias sobre vídeo game, suas memórias culturais, com seus próprios sucessos e particularidades, mas acabam invisíveis para quaisquer outros que não a si mesmos.
O gamer brasileiro médio tem muito mais em comum com um italiano, turco ou filipino que um americano, mas raramente nos comunicamos diretamente sobre nossas histórias. Tudo vem mediado pelos EUA.
Com o tempo somos enganados a acreditar que esses elementos compartilhados não são importantes, que talvez nem mesmo existam… nossa história em comum é apagada e nos sujeitamos ao padrão centrado nos Estados Unidos.
Há muitos exemplos — um dos mais comuns nas discussões internacionais é como o riquíssimo cenário de computadores domésticos europeus nos anos 80 costuma ser apagado e substituído pelos eventos do “Crash dos Jogos Eletrônicos de 1983”, algo restrito à indústria Norte-Americana. Computadores como o Amstrad CPC, C64, ZX Spectrum, Amiga, MSX, etc… todos são substituídos pelo todo poderoso Nintendinho.
Se isso acontece lá na Europa, imagine no Brasil.
O apagamento das diferentes formas de jogar
Que fique claro, isso não é sobre a popularidade de jogos ou consoles específicos. É uma questão mais complexa, que compromete a forma que entendemos a nossa história, a cultura e a identidade em relação aos jogos.
Por exemplo, todo brasileiro interessado em games nos anos 2000 passou por uma LAN House — o lugar do bairro onde você pagava por hora pra usar a internet e jogar, normalmente jogos como Counter-Strike e DOTA. Havia também as locadoras de jogos, onde você podia pagar por hora para jogar nos consoles.
Isso não é algo só nosso, é parte da história de todo o sul global. Os nomes mudam — PC bang, game club, internet café, ciber, kafejka internetowa — mas é algo que se encontra da Africa do Sul até a Russia, do Paraguai até o Uzbequistão.
Faz total sentido quando você lembra que ter um console ou computador novo em casa era extremamente caro nos anos 2000 (e ainda é!).
Mas em países ricos era muito mais fácil. Por isso, era comum organizarem as famosas LAN parties. Várias pessoas levando seus computadores / consoles para eventos ou então para as casas de amigos para jogar coisas como Doom, Halo, Quake, Unreal, etc.
Olhando para essas imagens você pode pensar que são as mesmas coisas — um bando de pessoas numa sala jogando juntas. Mas pense nos modelos de negócios e na cultura por trás delas:
- Numa LAN Party, são pessoas que compraram seus computadores e seus jogos. Elas se reúnem de vez em quando, jogam títulos multiplayer juntas e então voltam para suas casas com seus PCs. Lá, talvez elas joguem outros estilos de jogos, mais focados em single-player.
- Numa LAN House, as pessoas não compram computadores ou jogos. Com menos compradores, é mais difícil para a indústria local se desenvolver. E se essas pessoas jogam apenas nesses locais, num ambiente multiplayer, pagando por hora, é menos provável que irão jogar títulos single-player de longa duração como RPGs. Pra zerar Final Fantasy VII numa locadora, só pagando mais de 50 horas e comprando seu próprio memory card pra ninguém zuar o seu save.
Fora o fato de que LAN Houses e locadoras são espaços fixos, abertos, sociais. É onde você ia depois da escola encontrar os amigos e ver a galera jogando. Faz parte da forma coletiva de como vivemos jogos — o pessoal envolta assistindo uma partida de Winning Eleven, chamando prum X1, ou se juntando pra ver um Fatality de Mortal Kombat.
Então as LAN parties e as LAN houses podem parecer iguais, porém representam realidades econômicas completamente diferentes, que levaram a diferentes culturas sobre jogos, interações sociais e modelos de negócios. Mas como a mídia dominante é a norte-americana, livros, séries e canais do Youtube sobre história dos games só falam das LAN parties.
O apagamento dos diferentes modelos de negócios
O final dos anos 90 e início dos 2000 foi quando os MMOs explodiram em popularidade. O modelo de negócio para MMOs americanos como Ultima Online e Everquest era bem caro para os jogadores. Eles tinham que ter um computador com Internet, comprar o jogo numa caixa, comprar as expansões numa caixa e também pagar uma assinatura mensal para jogar.
Mas na Coreia do Sul, pessoas jogavam em PC Bangs — a versão regional das LAN houses. As pessoas não vão comprar um jogo e trazer para instalar. E também não querem pagar uma assinatura mensal além da taxa por hora da LAN house.
Portanto as empresas coreanas precisaram buscar diferentes soluções de negócios. Primeiro tentaram vender licenças para franquias de PC Bang para que seus usuários tivessem acesso gratuito ao jogo, depois acabaram desenvolvendo o modelo free-to-play.
Um modelo de negócio diferente dos Estados Unidos, adaptado para uma realidade diferente dos Estados Unidos. Parece óbvio, nós também vivemos isso —muitos jogos free-to-play fizeram sucesso no Brasil pois eram gratuitos e rodavam mesmo no computador mais lento da LAN House.
Mas nos EUA foi diferente. Acostumados a pagar por tudo de antemão, muitos americanos rejeitaram o modelo free-to-play, e se formou um certo elitismo que continua até hoje. É claramente a opinião de quem podia pagar o computador, os jogos, expansões e mensalidades.
De volta para Mia Consalvo & Christopher A. Paul’s em Real Games:
“A relutância geral daqueles que falam sobre e cobrem jogos online em levar os jogos free-to-play a sério é resultado de um conjunto específico de suposições sobre como os jogos deveriam funcionar e o que eles deveriam ser.”
Em cima disso, vieram o preconceito e o excepcionalismo americano: quem pegar livros, artigos e vídeos em inglês sobre história dos jogos online, irá ver que a história costuma ser MUDs -> Ultima Online -> EverQuest -> World of Warcraft.
Não há espaço para jogos Asiáticos. MMOs free-to-play como MapleStory e Fantasy Journey to the West sempre foram mais populares do que World of Warcraft, com muito mais jogadores, mas eles são apagados.
Assim temos décadas de estudos acadêmicos que têm ciência do tamanho dos títulos asiáticos, porém não engajam com eles. Isso levou os estudos subsequentes a também ignorá-los —você jogou Ragnarok Online, mas se nenhuma referencia menciona ele, talvez não seja importante né?
Hoje, temos gacha — um tipo diferente de free-to-play. E as coisas só pioraram. Enquanto jogos se expandem pelos cenários mobile e do Sul Global, o colapso da mídia de jogos leva cada vez menos vozes novas a entrarem na conversa. Muito do discurso da mídia parece estar preso em 2012, com as mesmas pessoas falando sobre os mesmos jogos para o mesmo público, com os mesmos vieses e interesses.
O apagamento da informalidade
Qual o jogo mais vendido do Brasil?
O mais popular de nossa história? O jogo que faz parte da nossa cultura e está em toda locadora, em todo camelô, em todo pendrive?
“Mas isso não é um jogo, é um mod” — digita o chato nos comentários.
Sim, é um mod. Os jogos mais populares no Brasil são mods em algum nível — seja para adicionar a língua Portuguesa em jogos como Skyrim e Breath of the Wild, seja para fazer conversões complexas. Ou gambiarras.
PokéTibia (em sua versão mais recente) é um MMO com mais jogadores do que muitos MMOs “de verdade” —incluindo o Tibia original. Ouso dizer que tem uma das maiores equipe de desenvolvedores da america latina. Outro exemplo são os GTA Motovlog, um tipo extremamente popular de ports de GTA San Andreas para Android. Muitos feitos por jovens sem acesso a computadores, que aprenderam a editar os arquivos e criar mods no celular mesmo.
Mods assim são o que acontece quando você tem desenvolvedores talentosos sem qualquer infraestrutura ou suporte para ajudá-los a fazer seus próprios jogos.
A maioria dos brasileiros conhece esses jogos. Entretanto, se você perguntar “qual é o maior jogo brasileiro?”, eles terão dificuldade para responder… talvez um jogo indie na Steam? Afinal, GTA Motovlog e Bomba Patch nem são “jogos de verdade”, né?
Counter-Strike, Day-Z, Garry’s Mod, DOTA… todos são mods, mas são considerados “jogos de verdade”. Por quê?
Aqui eu gostaria de citar outra leitura essencial sobre jogos, o livro de Brendan Keogh The Videogame Industry Does Not Exist (lit. A Indústria de Vídeo Games Não Existe). Aliás, é gratuito!
“Muitas pessoas criam vídeo games em diversos contextos, e algumas dessas pessoas ganham dinheiro com isso. No entanto, o legado da formalização rígida persiste e ainda exerce uma forte influência sobre as percepções do que é a criação de vídeo games entre pesquisadores, legisladores, estudantes e os próprios desenvolvedores de vídeo games.”
Os primeiros jogos eram experimentos tecnológicos e projetos pessoais, compartilhados gratuitamente em disquetes, folhas de código e revistas ao redor do mundo. Corporações se formaram com os anos, mas essa cultura de hacker nunca acabou — ela se manteve através de BBS games, MUDs, Freeware, jogos de browser, jogos de Flash, mods, homebrews, projetos de código aberto, crackers, emuladores, demoscene, romhacks, servidores privados, fangames, MiSTer, consoles e jogos piratas, RPG Maker, BYOND, AGS, Ren’Py, bitsy, etc…
Todos esses exemplos continuam sendo apagados pelo lado “da indústria”, que reforça um conceito de jogos formais, higienizados, facilmente digeríveis e — especialmente — monetizáveis.
Por isso que Counter-Strike é um “jogo de verdade” mas Bomba Patch não.
O auto-apagamento
A primeira vez que eu joguei Pokémon foi num emulador na LAN house da minha cidade, no interior de SP. Passei incontáveis horas ali, sei que LAN houses e locadoras são uma importante parte da nossa história. A influência delas é visível na cultura, nos e-sports, na mídia, nos artigos e documentários. No nosso jeito de jogar.
E eu já conversei com pessoas da Coréia, Espanha, China, Rússia, Itália, Filipinas, Malásia, etc que tiveram cada uma suas próprias versões locais.
Mas mesmo assim, na primeira vez que eu escrevi sobre a ascensão dos jogos multiplayer para o CRPG Book, eu não as mencionei.
Por isso que esta questão do apagamento é tão importante para mim.
Décadas de vídeos, artigos, ensaios e livros sobre a história dos jogos que não se pareciam em nada com as minhas experiências me fizeram apagá-las — pensando que o que eu vivi não era importante… era uma coisa pequena e local.
A verdadeira história dos vídeo games era outra coisa:
E essa imagem homogeneizada da história dos jogos está se espalhando. Pessoas do mundo todo absorvem ela pela mídia americana e por fontes escritas por americanos — Wikipedia, Netflix, podcasts, livros, documentários, etc. Ou então por influencers locais que repetem as mesmas informações sem pensar — como se trocar Pokémon no recreio da escola com um GameBoy original, jogo original e um cabo Link (só o cabo já era uma fortuna) fosse a realidade brasileira.
É tão alienante quando assistir Friends e achar que aquilo era a vida do brasileiro médio nos anos 90. Mesmo nos EUA era algo idealizado.
Por isso achei tão poderosa a exposição em Taiwan que abre este artigo. Foi pequena, em uma biblioteca local, quase como um projeto pessoal dos curadores. Mas eu admiro profundamente o que conseguiram fazer — naquele espaço, os clássicos taiwaneses foram merecidamente exibidos entre os clássicos internacionais. Quanto mais espaços assim existirem, mais difícil será para que a história deles seja apagada.
Obrigado pela leitura!
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Obrigado também ao Belmonteiro, por me ajudar a traduzir este artigo do original em inglês.